terça-feira, 21 de setembro de 2010

Resenha de "Memória, história e testemunho” (Gagnebin)


Jeanne Marie Gagnebin, da Pontifícia Universidade Católica e da Universidade Estadual de Campinas, abordou questões políticas e éticas em seu texto (GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Memória, História e Testemunho”, In BRESCIANI, Stella & NAXARA, Márcia (org.) Memória e (res)sentimento. Indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Ed. Unicamp, 2004. p. 85-94).
Parte de conceitos da filosofia de Walter Benjamim, nesse capítulo da obra coletiva “Memória e (re)sentimento”, ora em comento.
O artigo escrito originalmente para o colóquio Memória e Desaparecimento, que ocorreu na UERJ (Rio de Janeiro) em 1999, foi atualizado para apresentação na UNICAMP, em 2004. A autora explora o “fim da narração tradicional” como questão essencial em termos benjaminianos colocada na literatura moderna e contemporânea, na reflexão filosófica e nas discussões históricas e historiográficas atuais.
Explora, nesse propósito, dois ensaios do autor: Experiência e pobreza, de 1933 e O narrador, escrito entre 1928 e 1935 (mais conhecido). Apesar de apresentarem conclusões que parecem opostas, e quase contraditórias, ambos se iniciam com descrições semelhantes, como “perda ou declínio da experiência” - como possibilidade de uma tradição compartilhada por uma comunidade humana - e ilustrada pela lenda antiga do vinhateiro (provavelmente de autoria de Esopo) que transmite aos filhos, no leito de morte, o que tem de mais precioso: sua experiência, sem que eles o percebam em razão de que não usa palavras diretas para identificar o seu “tesouro”.
O que interessa para Benjamim, na análise da autora, é algo maior do que um simples discurso moralista ou a existência dos personagens; importa a dimensão que “transcende a vida e a morte particulares, mas nelas se diz; algo que concerne aos descendentes”, ou seja, o que lhe interessa na encenação dessa história é a representação da mensagem transmitida de uma geração a outra com duas perdas possíveis: a própria experiência e as formas tradicionais de narração, como consequência da primeira. Essas desaparições estariam associadas a fatores históricos que culminaram com as Grandes Guerras: “os sobreviventes que voltaram das trincheiras, observa Benjamin, voltaram mudos” e aquilo que vivenciaram “não podia mais ser assimilado por palavras”.
Benjamin reúne reflexões, em diagnóstico desse processo. Uma sobre as forças produtivas da técnica desenvolvidas de modo acelerado a serviço da organização capitalista e outra, convergente, sobre a “memória traumática” relativa à impossibilidade da linguagem cotidiana em assimilar a situação de choque (o “trauma”, que diz Freud na mesma época) que fere e corta do sujeito o acesso ao simbólico (note-se, a linguagem é constituída de símbolos). Essa impossibilidade de resposta simbólica clássica é um auxílio para compreender porque o autor apresenta consequências diferentes nos dois textos, apesar do mesmo ponto de partida: a constatação da perda da experiência e da narração tradicional.
O primeiro texto explora a pobreza de experiência que traz consequências à arte moderna e à estética de um modo geral, por exemplos emprestados da arquitetura e pelos novos materiais utilizados em sua composição, levando em conta a regra de “não deixar rastros” governante na vida moderna. O poema de Brecht, no texto de Benjamin, ilustra esse modo de vida, colocado de forma positiva “contra as ilusões consoladoras e harmonizadoras das práticas artísticas burguesas”, pela quebra da transmissão da tradição, permanecendo indagações comuns dos autores sobre as dificuldades objetivas impostas ao restabelecimento da tradição e da narração nas sociedades “pós-modernas” e “pós-totalitárias”. “Apague os rastros” é a mensagem do poema que representa um contraponto à fabula do vinhateiro.
O segundo texto, apesar de formular também o fim da narração tradicional, esboça a idéia de outra narrativa representada pela “transmissão entre os cacos de uma tradição em migalhas”, para não deixar o passado no esquecimento, pela missão do poeta e do historiador preconizada por Heródoto. Exprime a figura do narrador (historiador) em um aspecto humilde, representado pela imagem do “Justo” (figura mítica judaica) que é anônima - os “sete Justos” sobre os quais repousa o mundo – ou à figura do trapeiro catador de sucata e lixo nas grandes cidades modernas, que trabalha movido pela pobreza mas também pelo desejo de nada deixar perder. Esse trabalhador deve recolher principalmente o que é deixado de lado como algo sem significação ou com o qual a história oficial não saiba o que fazer, como sobras do discurso histórico, o que a tradição, oficial ou dominante não recorda.
Por fim, propõe a autora distinção entre atividade de comemoração e outro conceito, o de rememoração. Esta última, traduz a atividade do historiador que, em vez de repetir aquilo de que se lembra, “abre-se aos brancos, aos buracos, ao esquecido e ao recalcado”, com uma atenção precisa ao presente. O sonho insistente de Primo Levi, em que tenta contar os seus sofrimentos passados em um campo de concentração e os que se retiram um a um, deixando o narrador sozinho e desesperado por se fazer ouvir, exprime a escolha necessária de quem “não vai embora” e se coloca como uma testemunha (no sentido diferente da testemunha direta, do “histor” de Heródoto), que consegue ouvir a narração alheia insuportável, não por culpa ou compaixão, mas pela relevância da transmissão simbólica que viabiliza uma retomada reflexiva do passado e, pela sua não repetição - de um sofrimento indizível desse passado -, auxilia na invenção do presente.

Adilson Luís Franco Nassaro
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