terça-feira, 21 de setembro de 2010

Resenha de "Memória, história e testemunho” (Gagnebin)


Jeanne Marie Gagnebin, da Pontifícia Universidade Católica e da Universidade Estadual de Campinas, abordou questões políticas e éticas em seu texto (GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Memória, História e Testemunho”, In BRESCIANI, Stella & NAXARA, Márcia (org.) Memória e (res)sentimento. Indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Ed. Unicamp, 2004. p. 85-94).
Parte de conceitos da filosofia de Walter Benjamim, nesse capítulo da obra coletiva “Memória e (re)sentimento”, ora em comento.
O artigo escrito originalmente para o colóquio Memória e Desaparecimento, que ocorreu na UERJ (Rio de Janeiro) em 1999, foi atualizado para apresentação na UNICAMP, em 2004. A autora explora o “fim da narração tradicional” como questão essencial em termos benjaminianos colocada na literatura moderna e contemporânea, na reflexão filosófica e nas discussões históricas e historiográficas atuais.
Explora, nesse propósito, dois ensaios do autor: Experiência e pobreza, de 1933 e O narrador, escrito entre 1928 e 1935 (mais conhecido). Apesar de apresentarem conclusões que parecem opostas, e quase contraditórias, ambos se iniciam com descrições semelhantes, como “perda ou declínio da experiência” - como possibilidade de uma tradição compartilhada por uma comunidade humana - e ilustrada pela lenda antiga do vinhateiro (provavelmente de autoria de Esopo) que transmite aos filhos, no leito de morte, o que tem de mais precioso: sua experiência, sem que eles o percebam em razão de que não usa palavras diretas para identificar o seu “tesouro”.
O que interessa para Benjamim, na análise da autora, é algo maior do que um simples discurso moralista ou a existência dos personagens; importa a dimensão que “transcende a vida e a morte particulares, mas nelas se diz; algo que concerne aos descendentes”, ou seja, o que lhe interessa na encenação dessa história é a representação da mensagem transmitida de uma geração a outra com duas perdas possíveis: a própria experiência e as formas tradicionais de narração, como consequência da primeira. Essas desaparições estariam associadas a fatores históricos que culminaram com as Grandes Guerras: “os sobreviventes que voltaram das trincheiras, observa Benjamin, voltaram mudos” e aquilo que vivenciaram “não podia mais ser assimilado por palavras”.
Benjamin reúne reflexões, em diagnóstico desse processo. Uma sobre as forças produtivas da técnica desenvolvidas de modo acelerado a serviço da organização capitalista e outra, convergente, sobre a “memória traumática” relativa à impossibilidade da linguagem cotidiana em assimilar a situação de choque (o “trauma”, que diz Freud na mesma época) que fere e corta do sujeito o acesso ao simbólico (note-se, a linguagem é constituída de símbolos). Essa impossibilidade de resposta simbólica clássica é um auxílio para compreender porque o autor apresenta consequências diferentes nos dois textos, apesar do mesmo ponto de partida: a constatação da perda da experiência e da narração tradicional.
O primeiro texto explora a pobreza de experiência que traz consequências à arte moderna e à estética de um modo geral, por exemplos emprestados da arquitetura e pelos novos materiais utilizados em sua composição, levando em conta a regra de “não deixar rastros” governante na vida moderna. O poema de Brecht, no texto de Benjamin, ilustra esse modo de vida, colocado de forma positiva “contra as ilusões consoladoras e harmonizadoras das práticas artísticas burguesas”, pela quebra da transmissão da tradição, permanecendo indagações comuns dos autores sobre as dificuldades objetivas impostas ao restabelecimento da tradição e da narração nas sociedades “pós-modernas” e “pós-totalitárias”. “Apague os rastros” é a mensagem do poema que representa um contraponto à fabula do vinhateiro.
O segundo texto, apesar de formular também o fim da narração tradicional, esboça a idéia de outra narrativa representada pela “transmissão entre os cacos de uma tradição em migalhas”, para não deixar o passado no esquecimento, pela missão do poeta e do historiador preconizada por Heródoto. Exprime a figura do narrador (historiador) em um aspecto humilde, representado pela imagem do “Justo” (figura mítica judaica) que é anônima - os “sete Justos” sobre os quais repousa o mundo – ou à figura do trapeiro catador de sucata e lixo nas grandes cidades modernas, que trabalha movido pela pobreza mas também pelo desejo de nada deixar perder. Esse trabalhador deve recolher principalmente o que é deixado de lado como algo sem significação ou com o qual a história oficial não saiba o que fazer, como sobras do discurso histórico, o que a tradição, oficial ou dominante não recorda.
Por fim, propõe a autora distinção entre atividade de comemoração e outro conceito, o de rememoração. Esta última, traduz a atividade do historiador que, em vez de repetir aquilo de que se lembra, “abre-se aos brancos, aos buracos, ao esquecido e ao recalcado”, com uma atenção precisa ao presente. O sonho insistente de Primo Levi, em que tenta contar os seus sofrimentos passados em um campo de concentração e os que se retiram um a um, deixando o narrador sozinho e desesperado por se fazer ouvir, exprime a escolha necessária de quem “não vai embora” e se coloca como uma testemunha (no sentido diferente da testemunha direta, do “histor” de Heródoto), que consegue ouvir a narração alheia insuportável, não por culpa ou compaixão, mas pela relevância da transmissão simbólica que viabiliza uma retomada reflexiva do passado e, pela sua não repetição - de um sofrimento indizível desse passado -, auxilia na invenção do presente.

Adilson Luís Franco Nassaro
Divulgue, citando a fonte.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Resenha de "Introdução" - de "A invenção das tradições" - Eric Hobsbawm


Texto examinado:
HOBSBAWM, Eric. “Introdução” In: HOBSBAWM, Eric. RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 9-23.

Eric Hobsbawm, nascido em Alexandria, em 1917, é um historiador reconhecido internacionalmente pela sua capacidade e versatilidade, dispensando apresentação no meio acadêmico por conta de sua rica e conhecida produção nos estudos sobre classes populares, ideologias políticas e sociais, história contemporânea e teoria da história.
Um de seus interesses é o desenvolvimento das tradições e também o estudo de sua construção no contexto do Estado-nação. Argumenta que muitas vezes as tradições são inventadas por elites nacionais para justificar a existência e importância de suas respectivas nações. Hobsbawm reconhece em sua “Introdução” à obra “A invenção das tradições” que a expressão título corresponde a uma questão interdisciplinar e referenda a contribuição da historiografia nesse campo comum também aos antropólogos sociais e outros estudiosos de ciências humanas que devem considerá-la útil às suas pesquisas.
A expressão “invenção das tradições” é utilizada em sentido amplo, mas bem definido, incluindo tanto as tradições propriamente inventadas e institucionalizadas, quanto àquelas que surgem repentinamente e da mesma forma se estabelecem, permanecendo tal como as outras, como se sua origem fosse remota, ainda que durem relativamente pouco. Esse conjunto de práticas de natureza ritual ou simbólica teriam por objetivo incorporar determinados valores e comportamentos definidos por meio da repetição em um processo de “continuidade em relação ao passado”, via de regra, um passado histórico apropriado.
Explica o autor que ela pode se expressar pela escolha de um estilo arquitetônico, por exemplo, funcionando como uma reação a situações novas, funcionando como referência a situações anteriores em uma continuidade artificial. Esse contraste torna interessante o estudo do tema na história contemporânea, pela tentativa de se estruturar de modo imutável e invariável alguns aspectos do meio social ao mesmo tempo em que se apresentam constantes as mudanças e inovações do mundo moderno.
Apresenta a diferença entre tradição e costume (vigente nas sociedades “tradicionais”) e, também, entre tradição e convenção (ou rotina). A tradição tem por objetivo e característica a invariabilidade, impondo práticas fixas, normalmente formalizadas, como repetição. Já o costume não impede as inovações e muda até certo ponto, limitado pela “exigência de que deve parecer compatível ou idêntico ao precedente” e a convenção não possui função simbólica nem ritual, embora possa adquiri-la eventualmente. Após a Revolução Industrial, as sociedades se obrigaram a formar novas redes de convenções e rotinas e na medida em que elas se tornam hábitos, se perpetuam por uma necessidade mecânica. Desse modo, as redes de convenção não constituem “tradições inventadas”, pois as justificativas seriam técnicas, não ideológicos e poderiam ser prontamente modificadas ou mesmo abandonadas pela necessidade prática.
O autor destaca que é relativamente desconhecido o processo pelo qual os complexos simbólicos e rituais são criados, considerando que a invenção de tradições seria um meio de formalização e ritualização sempre se referindo ao passado, impondo repetição. Ele é mais evidente quando realizado por um só homem a exemplo de Baden Powell, com o escotismo. Algumas vezes o processo é documentado em sua criação o que facilita a investigação, outros não. Ainda, há algumas situações em que as tradições são parte inventadas, parte desenvolvidas em grupos fechados ou realizadas de modo informal em determinado ambiente aberto e se perpetuam. Também, existiriam adaptações para conservar velhos costumes em condições novas ou para usar velhos modelos para novos fins (ex: Igreja Católica frente a novos desafios). O autor prossegue, citando vários exemplos e variações sobre o tema que provocam um debate quanto à apropriação de objetos do passado para perpetuação do presente ou para definição de uma ritualística capaz de estabelecer um padrão de perpetuidade.
Em síntese, sobre as tradições inventadas desde a Revolução Industrial, Hobsbawm propõe classificação em três categorias superpostas, quais sejam: a) as que estabelecem ou simbolizam a coesão social ou as condições de admissão de um grupo ou de comunidades reais ou artificiais; b) as que estabelecem ou legitimam instituições, status, ou relação de autoridade e c) aquelas cujo propósito principal é a socialização, a inculcação de ideias, sistemas de valores e padrões de comportamento.
Defendida a preponderância das tradições inventadas “comunitárias”, o autor passa a investigar a sua natureza com o auxílio da antropologia, para demonstrar diferenças entre “as práticas inventadas e os velhos costumes tradicionais”. As práticas antigas eram sociais específicas e muito coercivas, enquanto as inventadas tendem a ser gerais e vagas quanto aos valores que se quer inculcar (“patriotismo”, “lealdade”, “dever” etc.). A bandeira nacional, o hino nacional e as armas nacionais seriam os símbolos pelos quais um país proclama sua identidade e soberania perante os demais, revelando em si o passado, pensamento e toda a cultura da nação. Identifica, ainda, um grande espaço cedido pela decadência das velhas tradições e antigos costumes, que não foi preenchido pelas invenções, apesar de abundantes.
Explora, por fim, o aspecto dos vestígios ou indícios encontrados nas tradições inventadas que indicam problemas que não poderiam ser localizados no tempo. A partir desses sinais, o pesquisador pode avançar, desde que em um contexto amplo da história da sociedade e integrado em um estudo mais extenso. Também, esclarece o papel dessa análise sobre as relações humanas com o passado, o que é ofício do historiador e o fenômeno de tornar-se a própria tradição, por vezes, símbolo de conflito, a exemplo das lutas por causa de monumentos presentes ao longo do tempo.
Em conclusão, os historiadores estão envolvidos nesse processo de interpretação das tradições inventadas e eles contribuem “para a criação, demolição e reestruturação de imagens do passado que pertenciam não só ao mundo da investigação especializada, mas também à esfera pública onde o homem atua como ser político”. Especialmente no caso da história moderna e contemporânea, são altamente aplicáveis para compreensão de uma “inovação histórica comparativamente recente”, qual seja, a “nação” e os fenômenos associados (nacionalismo, Estado nacional, símbolos nacionais e outros). Para tanto, Hobsbawm explora o exemplo da concepção das nações israelita e palestina que deve ser considerada nova, não obstante a longa continuidade histórica dos judeus ou dos muçulmanos do Oriente Médio. Isso se dá em função de suas associações a símbolos adequados, em geral bastante recentes.

Adilson Luís Franco Nassaro
- Divulgue, sempre citando a fonte -

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

História de várias memórias


Textos examinados:

HALBWACHS, Maurice. “Memória coletiva e memória histórica”, In: A memória coletiva. S. Paulo: Vértice, 1990 (original de 1925), p. 53-89.

SEIXAS, Jacy Alves de. “Percursos de memória em terras de história: problemáticas atuais”, In BRESCIANI, Stella & NAXARA, Márcia (org.) Memória e (res)sentimento. Indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Ed. Unicamp, 2004. PP. 37-58.

SHAPIN, Steven. “La gran civilidad: la credibilidad, la verdad y el orden moral”, In: SEPTIEN, Valentina Torres. Producciones de Sentido, II: Algunos Conceptos de La Historia Cultural. México: Universidad Iberoamericana, 2006. p. 273-340.

Dos três textos examinados, julgo o de Jacy Alves de Seixas, de 2004, como o mais abrangente porque se enriquece de várias construções do próprio Maurice Halbwachs, precursor de 1925, e de Pierre Nora, produzido já em 1984; portanto, dialoga com dois autores que estudaram a mesma relação intrigante entre história e memória, e que estão separados por seis décadas. A retomada dessa análise demonstra a relevância das “novas velhas” questões que envolvem memória e história.
O trabalho de Seixas, em forma de reflexões, é parte de uma pesquisa mais ampla sobre a “memória histórica” compreendida como “a memória de todas as memórias”. Nesse sentido, investiga as conexões que se estabelecem entre os dois universos a partir de um enfoque que transcende a divisão de disciplinas, ou seja, discorre sob um ponto de vista transdisciplinar, mirando na literatura (com citações de obras de Marcel Proust) e na filosofia (com referências à produção de Henri Bergson).
Em razão dessa sua característica, adoto o texto de Seixas como uma espécie de guia para a tarefa de navegar no turbulento mar de expressões que caracterizam a relação inquietante, mas indispensável, entre história e memória. Durante a incursão proposta - que segue igualmente os caminhos já indicados por Halbwachs, em sua obra sobre a “sociologia da memória coletiva”, com um frescor capaz de transcender gerações, e por Steven Shapin em 2006, tratando da credibilidade, da verdade e da ordem moral - surge a disposição de apresentar, sobre o material original, outras reflexões. Colocando-me na condição de um aventureiro navegador, elas me parecem úteis para a tarefa de organizar, ao menos num plano pessoal, as informações e experiências de estudo que passam a integrar também a minha “memória individual”.
Noto inicialmente que os autores tratam a memória como sinônimo de “lembrança”, pois alternam o uso das mesmas expressões. Também, consideram a memória coletiva – a memória de um grupo - uma realidade, não obstante o senso comum associar as lembranças à simples faculdade de cérebros, portanto naturalmente individuais. Tratando-se de um valor imaterial não somente constituído de imagens que persistem nas mentes e que, com a tecnologia hoje disponível, ainda não se consegue filmar ou reproduzir em sua condição original, a memória coletiva é uma construção (ou, como diriam os juristas, uma “ficção”), uma elaboração familiar aos estudos de sociologia e benéfica à compreensão das particularidades do registro da história. Como usual, quase sempre os autores utilizam a expressão “história” referindo-se à historiografia, no próprio sentido de escrita da história.
Como ponto de partida dos significados envolvendo memória individual, memória coletiva, história e as variações sobre o mesmo tema, observo que Halbwachs conclui em sua exposição que memória coletiva não se confunde com a história e, portanto, a expressão memória histórica por ele próprio utilizada inicialmente (e que Seixas e outros autores empregarão com frequência) não teria sido uma escolha apropriada, pela associação de dois termos que em mais de um ponto se opõem. Nesse prisma, a história se trata de uma “compilação dos fatos que ocuparam o maior espaço na memória dos homens” e a escolha, a aproximação e classificação dos acontecimentos passados se dão “conforme as necessidades ou regras que não se impunham aos círculos de homens que deles guardaram por muito tempo a lembrança viva” (HALBWACHS, p. 80).
Quanto à distinção entre memória individual e memória coletiva, a primeira seria caracterizada pelo quadro de uma personalidade, ou de uma vida em particular, em que viriam ocupar lugar lembranças em uma esfera individualizada, enquanto a segunda, marcada pela capacidade de, em alguns momentos, um indivíduo se comportar como parte de um grupo “que contribui para evocar e manter as lembranças impessoais, na medida em que estas interessam ao grupo”; apesar de envolver memórias individuais, a memória coletiva não se confunde com elas. Acompanhando o raciocínio, a distinção entre memória coletiva e história foi destacada pelo fato de a primeira pulverizar-se em uma multiplicidade de narrativas, especialmente com as qualidades oral e afetiva, enquanto a segunda é atividade da escrita, “organizando e unificando numa totalidade sistematizada as diferenças e lacunas e conclui: “a história começa seu percurso justamente no ponto onde se detém a memória coletiva” (HALBWACHS, p. 81).
Essas conclusões, todas de Halbwachs (originalmente em 1925), influenciaram Pierre Nora que, já em 1984, elaborou a obra “divisão e oposição” entre memória e história, defendendo que em tudo se opõem esses dois universos. Retomarei essa discussão após breve digressão à genealogia da chamada memória voluntária - aquela que não se quer esquecer - que é básica e interessa ao tema, enquanto manifestação de vontade humana.
Como sintetizou Seixas, as chamadas “categorias arcaicas” da memória dizem respeito a uma trifuncionalidade representada por: memória-ação, memória-afetiva e memória-conhecimento. Essa última trata-se de uma faculdade intelectual, uma função cognitiva que desde os gregos da época clássica significou “um meio privilegiado de acesso ao verdadeiro conhecimento”, a partir da aproximação “fecunda e problemática” entre memória e história. A tradição aristotélica, portanto, entendia a memória, no sentido da reminiscência, especialmente em sua função cognitiva manifesta como “conhecimento do passado”. Dessa forma, a noção da memória-conhecimento como uma faculdade intelectual teria alimentado toda a tradição platônica e neoplatônica e esta “fecundou a Idade Média, de onde, a partir da concepção agostiniana de memória, influenciou toda a cultura racionalista posterior”. Todavia, essa memória que se apreende exclusivamente na sua função cognitiva não seria algo evidente ou mesmo espontâneo, mas histórico e pressupondo uma chamada “trajetória de exílios” (SEIXAS, p. 39).
Importante um destaque, nesse momento, quanto à função política da memória que se pretende perpetuar, caracterizada pelo controle voluntário do passado - como um instrumento de controle do presente - não obstante o reconhecimento de que sempre existiram movimentos diferentemente políticos, ou seja, formas diferentes de manifestação política no seu mais amplo sentido, que inexoravelmente envolvem noções de dominação. Halbwachs atribuiu originalmente à memória coletiva a característica de “atividade natural, espontânea, desinteressada e seletiva”, para guardar do passado somente aquilo que lhe serve a fim de estabelecer uma ligação entre o presente e o passado, enquanto que, diferentemente, a história constituiria “um processo interessado, político e, portanto, manipulador” (SEIXAS, referindo-se a Halbwachs, p. 40). Note-se que o controle da materialidade em que a memória se expressa – ou se expressará - (relíquias, monumentos, arquivos, símbolos, rituais, datas, comemorações etc.) sempre é sinônimo de poder. Exemplo disso é a elaboração do imaginário da República no Brasil descrito por José Murilo de Carvalho em sua obra “A Formação das Almas” (CARVALHO, 1990).
Nas últimas décadas foi registrado um crescente interesse suscitado pela questão da memória, o que pode ser explicado pela evolução da historiografia, em particular na área da “história das mentalidades”, corrente que se propagou na década de 1970. Naturalmente, a memória apresentava-se implicitamente nessa fase, com destaque às pesquisas que buscavam abordagem de aspectos de cultura popular, valores familiares, características de comportamento em determinada localidade, ações religiosas e outros. Esses enfoques levariam a certa constituição social de memória.
Arlette Farge, avançando em tal abordagem, identifica o interesse da ciência histórica pelos marginais a partir do mesmo período, aquém da interpretação marxista, e nota a inversão do ponto de vista dominante: “Os excluídos da história, habitualmente sempre silenciados por não serem atores do acontecimento histórico, tornaram-se aqueles que podiam esclarecer o funcionamento das normas coletivas numa dada sociedade. Assim, o olhar se inverteu; dando prioridade aos transviados, aos criminosos, àqueles que a ordem procurava constranger, reprimir ou corrigir, a historiografia tentava responder à questão tão difícil das relações complexas e evolutivas que uma sociedade mantém com aqueles que recusam, voluntariamente ou não, momentaneamente ou não, os códigos e regras que a fundamentam e a cimentam e mesmo às vezes a nomeiam” (FARGE, 1993, p. 514).
Também é relativamente recente o encontro entre história e tempo presente, expressões que tradicionalmente o meio acadêmico considerava antinômicas até a década de trinta. Azema acentua que “a única história era a do passado, um passado cortado epistemologicamente do presente, que, ele próprio, pertencia ao rumor público, ao jornalismo, a qualquer coisa. Quer dizer que só se podia trabalhar com arquivos escritos, solidificados, que não corriam o risco de ser contestados pelos protagonistas protegidos pela regra dos cinqüenta anos de não comunicação” (AZEMA, 1993, p. 735). A superação dessa fase e inclusive a reputação que o tempo presente conquistou na historiografia, na minha percepção, indica uma valorização da memória individual, igualmente no contexto do crescente interesse suscitado pela questão da memória.
Mas existem outros efeitos contemporâneos. Seixas pontua que hoje, tem-se a impressão de que se vive sob um império da memória, com uma ruidosa valorização das efemérides. Também citando palavras de Nora, identifica uma recente “obsessão comemorativa” que se espalhou nas sociedades durante os últimos anos do século passado. Esse sintoma, no caso do Brasil, foi visível nas comemorações dos seus 500 anos, com todas as polêmicas capazes de envolver o tema, emergindo uma verdadeira “luta de memórias” manifestas com violência no “22 de abril”. Nessa oportunidade de comemoração, evidenciou-se o aspecto de um “país sem memória” e que continuou “excluindo do lugar de memória oficial a manipulação da memória dos excluídos (trabalhadores sem-terra, povos indígenas, negros, estudantes etc.)” (SEIXAS, p. 37).
No estudo dessa relação história e memória, surge uma problematização: a existência de certo descaso, como se houvesse uma “vergonha da memória” (por parte dos historiadores) que se esforçariam por apagá-la como tal, apesar da crescente valorização desse universo representado na historiografia brasileira, por exemplo, pelo chamado direito e dever de memória reivindicado por grupos sociais e políticos (SEIXAS, referindo-se a Pierre Vidal Naquet, p. 38). No Brasil, é emblemático o interesse em reunir e sistematizar informações sobre o período de 1964 a 1985.
Nesse contexto problematizado, parece haver uma transmutação ou substituição da memória pela história. Não sem propósito, aliás, no meu entendimento, o título de uma das obras em comento: “percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais” (de Seixas) indica a subordinação da memória em relação à história e não o contrário. A imagem que se apresenta é o seguinte: o “ente” memória percorre terras ocupadas pela história, como uma concessão da segunda em relação à primeira. Existe mesmo o reconhecimento de que há uma contemporânea apropriação da memória pela história, apesar do senso comum (não dos estudiosos) entender de modo diverso, ou seja, as pessoas ainda insistem na compreensão de que a memória estabeleceria a história.
Nora, ainda, radicaliza a distinção entre memória e história, apesar de estabelecer uma relação direta entre os dois universos. Para ele, “a memória é prisioneira da história, ou encurralada nos domínios do privado e do íntimo”, ou seja, “vive sob o ‘olhar de uma história reconstituída’”, transformada em seu objeto, na condição de uma memória historicizada. Defende que tudo o que se considera memória já não existe, porque é história, restando somente os chamados “lugares de memória” (SEIXAS, p. 41).
Essa apropriação da memória pela história seria viabilizada, em muito, pela “consciência historiográfica” e pela crítica à memória (desde Tucídides). Em outras palavras: “a historiografia deixando de se colocar como um dos campos constitutivos da memória para posicionar-se ‘fora’ dela” e em postura vigilante. A operacionalidade e a produtividade constituem o primeiro efeito dessa postura, com o surgimento de “movimentos identitários” e fenômenos contemporâneos da memória nominados como: memórias subterrâneas, lembranças dissidentes, lembranças proibidas, memórias enquadradas, memórias silenciadas, mas não esquecidas e outras. O segundo efeito, relacionado ao primeiro, é a “vulnerabilidade teórica”, pois não se discutem os mecanismos de produção e reprodução da memória e “tudo se passa como se a memória existisse teoricamente sob os refletores da própria história” (SEIXAS, p. 42).
Outro ponto importante nessa “viagem de memórias” é o seguinte: a insistência historiográfica exclusivamente calcada na memória voluntária teria deixado de lado aspectos até recentemente pouco explorados, relacionados às experiências afetivas e de descontinuidade propriamente humanas. Seria necessário incorporar esse papel de sensibilidade ao lado da chamada memória involuntária, atentando-se à movimentação particular da memória humana, qual seja, o seu tempo-espaço e a sua marca de atualização em todo o seu percurso. A indicação de releitura de Proust e de Bergson, nessa compreensão seria capaz de trazer importantes apoios para a reflexão historiográfica, como defende Seixas. Enfim, há necessidade de abrir novo horizonte e singrar águas mais calmas com paisagens oferecidas pela literatura e pela filosofia.
Proust e Bérgson tratam de memórias (plural) e não “memória” no singular. Em temos gerais, cada uma delas teria alcances e consistências diferentes, ocupando “lugares” diferentes em diversos “planos”. A memória intelectual (a voluntária) constituiria uma memória menor, essencial à vida, ligada à “repetição passiva e mecânica”, enfim, uma “memória dos fatos” que representa obstáculo à expressão da verdadeira memória. Proust, particularmente, critica a memória voluntária enquanto memória intelectual e lança como prova de valorização dos aspectos sensitivos o exemplo de um “odor” ou um “sabor” que desperta o passado em condições totalmente diversas daquela em que se acreditava lembrar.
Com várias frases de efeito imediato, Seixas prossegue expondo inclusive um toque poético dos excertos de Proust, para demonstrar o valor da memória involuntária, pelo despertar de um campo sensitivo – e o leitor, como eu, se surpreende induzido também nessa experiência – o que estabelece uma ponte direta com o tempo vivido, com um tempo perdido de cada um nós e de todos. Noto que as induções dessa memória involuntária, que se quer demonstrar úteis aos registros presentes, assim como algumas obras maturadas no terreno das emoções vividas, são dirigidas a pessoas adultas com uma certa bagagem de experiências que dão sentido à linguagem escolhida. Afinal, trata-se o tempo todo - e de todo o tempo - com códigos de linguagem e seleção de mensagens.
De fato, como demonstra a autora, “parece existir uma eleição, se não uma ‘afinidade eletiva’, no campo historiográfico, no que concerne ao trânsito memória e história: a historiografia elegeu a memória voluntária, desqualificando a memória involuntária tida como constitutiva de um terreno de irracionalismo(s) e, por essa razão, avessa à história”. Explica essa escolha por questões metodológicas preservadas por várias gerações para garantir a qualidade de ciência à história; mas questiona, assim como o faço em reflexão pessoal, se já não é tempo de integrar essa dimensão afetiva e exilada, tal como se tem notado em parte das ciências humanas “no estudo dos mitos, das sensibilidades e paixões políticas”. Especialmente Proust elabora uma reatualização que se opera pela memória, como algo que irrompe, que vem à tona, fundindo instante e duração em uma dimensão própria, o que pode ser definido como memória construtivista: “ao fazê-lo, deixa ao historiador, aproximando estética, sensibilidade e história, a sugestão de uma outra maneira de proceder para entender as relações tecidas entre memória e história, procedimento que incorpore as descontinuidades e, sobretudo, a importância da função de atualização das experiências passadas inscrita no ato da memória” (SEIXAS, p. 51).
Também justificam reflexões as memórias reconstruídas e as memórias simuladas. Halbwachs explora, para a primeira espécie, o exemplo de uma criança com suas lembranças e que ao se tornar adulta passa a participar mais ativamente dos mesmos grupos dos quais fazia parte e que passa a incorporar novas informações, ou quadros, em um processo esperado em função de que “a lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente e, além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores”. Quanto às memórias simuladas, o autor aborda a experiência em relação à morte de uma pessoa próxima como uma reação imaginativa e involuntária que permanece durante algum tempo e a inclinação de se “retocar o seu retrato”; ou, então, à sensação de incorporar um novo quadro sobre os fatos já conhecidos recebendo as lembranças um significado mais claro e iluminado (HALBWACHS, pp. 71-78). Penso, sobre essa questão, na experiência proposta por Machado de Assis com o seu eterno Dom Casmurro em que se transformou Bentinho transtornado pelos quadros incorporados às suas reais lembranças que, pela simulação da condição de traição, começaram a fazer sentido em uma explicação plausível no desafio lançado ao próprio leitor que experimenta essas sensações pela narrativa em primeira pessoa. Quando a simulação da memória ultrapassa os quadros remanescentes do passado vivido ou deles se desconecta, não haverá suporte para outra condição senão à própria loucura tão bem explorada em vários momentos da obra machadiana (ASSIS, 1997, original de 1899).
Por fim, preparando o encerramento dessa viagem, ou pequena história de memórias, não posso deixar de abordar a questão da verdade como um desafio para o historiador, levando em conta que a “memória parece responder, hoje, mais a uma função ética do que uma função cognitiva” (SEIXAS, p. 53). Ao mesmo tempo, o pesquisador acaba por concluir que desenvolve uma missão impossível apesar de seu empenho, como enfatiza Bédarida: “a busca da verdade deve ser explicitamente considerada a regra de ouro de todo historiador digno desse nome. Alfa e ômega desse ofício. Mesmo sabendo que não conseguiremos jamais dominar essa verdade, mas apenas nos aproximar dela. Chama vacilante e frágil na noite, mas que apesar de tudo ilumina o nosso caminho e sem a qual mergulharíamos nas trevas” (BÉDARIDA, 1996, p. 222).
Enquanto não se materializa o sonho da “Máquina do Tempo” de Robert George Wells (WELLS, 1972, original de 1895), as ferramentas de reconstrução ou compreensão do passado permanecerão confiadas às diligentes mãos do historiador. E ao que tudo indica, essa condição se manterá indefinidamente. Um dos personagens da ficção afirma inclusive que a invenção da máquina do tempo idealizada representaria “o conforto dos historiadores”! Ou seria a sua maior aventura? Infelizmente, tenho que admitir que, se houvesse a mínima possibilidade de funcionamento de tal engenho, por uma questão de lógica já teríamos notado a presença de um historiador do futuro em nosso meio.
Volto, portanto, a nossa realidade. A “verdade da história” resulta da conjugação dos componentes do passado, por meio dos vestígios que chegam até nós e do trabalho do historiador na sua reconstrução, havendo necessária “correlação e reciprocidade entre o sujeito e o objeto” (BÉDARIDA, 1996, p. 222). Portanto, esse esforço e a responsabilidade do ofício giram em torno da seleção de fontes, da escolha dos argumentos e da aplicação da linguagem, ou seja, corresponde a um processo decisório contínuo. Como adverte Steven Shapin: “Esta mesma função de seleção pode incluir uma distinção entre o que é ‘verdadeiro’ e o que simplesmente algumas pessoas estimam como tal, em uma determinada época”, em relação aos discursos desenvolvidos (SHAPIN, 2006, p. 274). Ingressamos, nesse ponto, no aspecto da credibilidade - em face de uma ordem moral vigente - como virtude mais cara na avaliação de quaisquer registros, não apenas aqueles considerados históricos.
Encerro essas reflexões com uma última consideração. A revalorização do tema “memória e história” e suas relações a partir das duas últimas décadas do século findo acompanhou uma sucessão de acontecimentos marcantes atrelados ao processo conhecido como globalização em um momento de grande fluxo e disponibilidade de informações, o que foi viabilizado também pela tecnologia da comunicação, da transmissão e da recepção de dados. Não obstante a sensação de segurança e mesmo a riqueza de registros franqueados, quem hoje navega sem direção encontra águas turvas pelo excesso de informação e se perde em lugares vazios de memória. Por isso, o porto seguro continuará, mais que nunca, representado por um núcleo de produção acadêmica, valorizado pelo cultivo de critérios metodológicos de pesquisa e de desenvolvimento, para produção e sistematização de conhecimentos.

Referências

ASSIS, Machado de. “Dom Casmurro”. Rio de Janeiro: Globo. 1997. Primeira edição: Rio de Janeiro, 1899, H. Garnier Livreiro-Editor.

AZEMA, Jean Pierre. “Tempo presente”, IN BURGUIÈRE, André (Org.), Dicionário das ciências históricas. Trad. H. A. Mesquita. Rio de Janeiro. Imago, 1993.

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Autor: Adilson Luís Franco Nassaro
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