domingo, 31 de outubro de 2010

Benedict Anderson: memória e esquecimento; percurso e passagens.


Obra analisada: ANDERSON, Benedict. “Memória e esquecimento”; "Percurso e passagens: sobre a geobiografia de comunidades imaginárias”, In: Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras. 2008, p. 256-310.


Anderson Benedict publicou em 2008 “Percurso e passagens: sobre a geobiografia de comunidades imaginárias”, como posfácio de sua obra “Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo” (original de 1983). O texto é apresentado na sequência do capítulo 10, “Memória e esquecimento”, da mesma obra.
Filho de pais britânicos, Anderson nasceu na China e cresceu na Califórnia; o seu livro "Comunidades Imaginadas" sobre questões envolvendo o nacionalismo fez rápido sucesso no mundo e já é considerado um clássico das ciências humanas, com traduções em diversos idiomas. Sua análise prestigia os pequenos países que tradicionalmente ficavam excluídos do debate na área da nacionalidade, em razão de uma perspectiva eurocêntrica dominante.
Para o autor, a nação pode ser compreendida como uma comunidade limitada, soberana e, acima de tudo, imaginada. Isso, porque sempre haverá fronteiras finitas; porque pressupõe relacionar-se com um grande pluralismo; porque seus atores (indivíduos), ainda que não se conheçam, compartilham signos e símbolos comuns, que os identificam (e se fazem reconhecer-se) como pertencentes a um mesmo espaço imaginário.
Dentre os diversos outros conceitos explorados, destaca-se o chamado “capitalismo editorial”, que guarda relações com os estudos sobre a emergência da esfera pública, discutida por intelectuais contemporâneos. O fenômeno se apresenta no contexto da proliferação dos jornais e outras publicações que acabam criando uma “ligação invisível” e, portanto, simbólica, entre pessoas que inicialmente não possuíam semelhanças culturais. As redes atuais também se formam nesse ambiente de difusão de informações, fomentando vínculos no mesmo fundamento do pensar “estar junto”, presente no pensamento daqueles que integram uma nação.
O capítulo 10, em especial, trata das relações entre “memória e esquecimento”, sob o prisma da formação das nações, abordando os espaços: novo e velho (os nomes dados aos novos espaços, com referência aos antigos, e o senso de paralelismo ou simultaneidade entre os dois universos), os tempos: novo e velho (a imaginação das comunidades paralelas e comparáveis às da Europa e a influência mútua dos eventos ao longo do tempo nos “novos” e “velhos” nacionalismos), a exumação de pessoas e fatos em risco de esquecimento (a imagem do “fratricídio tranqüilizador”) e a biografia das nações. Ao abordar esses temas, não trata apenas da formação de uma memória comum; trata do outro lado da “memória”, qual seja, o esquecimento, que também é considerado um dado importante pelo autor. De fato, pelos exemplos apresentados no desenvolvimento do seu trabalho, comprova que “as nações sempre precisavam de certa dose de esquecimento do passado para se constituírem enquanto tal”.
Mas, a grande riqueza dessa parte selecionado da obra está no relato apresentado no posfácio, que identifica os percursos e passagens que o próprio livro Comunidades Imaginadas trilhou desde sua primeira edição em 1983, em língua inglesa. O autor coloca a “geobiografia” da sua obra como ilustração de alguns temas centrais explorados no desenvolvimento do trabalho: o capitalismo tipográfico, a vernaculização e o casamento indissolúvel entre o nacionalismo e o internacionalismo, dentre outros. Ocorre como se o relato da experiência da circulação impressa dos argumentos por ele apresentados originalmente (o livro em si) comprovasse as suas hipóteses explicativas sobre diversos aspectos do fenômeno nação. Incorporado ao livro, já se encontra a história de sua circulação recente e, inclusive, influências possíveis no processo histórico das nações (seu objeto de estudo).
Nesse balanço mundial da circulação da obra e suas peculiaridades, Anderson explora as características das editoras e a motivação das traduções e publicações, as nuances de língua adaptada em contraste com o conceito original, as “censuras” impostas em alguns países com regimes totalitários e as versões propositalmente adaptadas, chegando ao ponto de, em caso citado, transformarem o livro em uma versão “monarquista” quando a interpretação original, pela formação e visão pessoal do escritor, era republicana. De forma geral, o livro acaba adotado como espécie de “manual” pela maioria dos países que contam com traduções e publicações (oficiais ou não). As ilustrações de capa relatadas constituem atração a parte, pois demonstram, de um lado, o interesse comercial de uma capa atraente ao consumo e, de outro lado, uma capa que represente um valor de nacionalidade local que promova o conteúdo do livro em termos de argumento e discurso, ao mesmo tempo em que enaltece, em alguns casos, aspectos locais de identidade.
Enfim, esse grande “arremate” da obra disponibilizado em posfácil, comprova que “Comunidades Imaginadas” conquistou leitores nas diversas partes do globo e já se tornou uma obra clássica e indispensável aos estudiosos sobre o tema nação e suas variantes. Como o próprio autor reconheceu, em conclusão, a obra não é mais sua; pertence agora ao mundo.

Autor: Adilson Luís Franco Nassaro
(divulgue, sempre citando a fonte e o autor)

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Resenha de “Uma história social da memória” - François Dosse: A História



François Dosse, historiador francês, no capítulo “Uma história social da memória”, do livro “A História” - Bauru: EDUSC, 2004. p. 261-298 - apresenta um amplo painel sobre a recuperação da memória pela história, trazendo, sob esse prisma, os seguintes relatos relacionados à historiografia e ao pensamento na França: as tentativas de se firmar uma origem para o povo francês, com variações de defesa entre a origem gaulesa e a troiana; o sonho da “história perfeita” do século 16; a “glorificação do poder” na produção historiográfica do século 17; o “patriotismo” do século 18; a geração liberal e a “legitimidade sólida de monarquia constitucional” do século 19; a “distinção entre duas memórias” na obra de Bérgson; a “dissociação história-memória” de Halbwachs; a problematização da memória pela história; os ensinamentos da psicanálise; a questão das “patologias coletivas da memória”; o “futuro do passado”; a diferença entre o “silêncio e o esquecimento”; o equilibro entre “repetição e criatividade”.
Nessa digressão desafiadora, o autor lida inicialmente com o tema “o romance nacional”, defendendo que existe há muito tempo uma recuperação do nível memorial pelo nível histórico e é necessário dissociar esses dois planos para a compreensão de suas intrínsecas relações. Inicialmente os mosteiros muniram-se de instrumentos para traçar os fundamentos da memória; depois, o poder político construiu a sua própria história-memória e, dessa síntese, teria nascido a história da França. Apresenta um breve retrospecto do século IX ao século XII, destacando a cidade de Reims como um centro intelectual por influência de autoridades eclesiásticas e, depois Saint-Denis como centro da historiografia real, em face da influência do abade Suger nas decisões políticas - pela confiança conquistada junto ao rei Luís VII -, inclusive substituindo o rei no poder enquanto este se ausentava em cruzada.
O mito das origens - como busca de identidade - é abordado pelo autor, que relata a tensão entre os defensores da origem troiana e aqueles que defendem a origem gaulesa da França. A lenda da origem troiana (os francos seriam oriundos da família real de Tróia) é mais antiga, do século VII, perdurando até o século XVI e foi recuperada em alguns momentos posteriores da história francesa. A partir do século XV, a identificação somente com os gauleses teria ganhado amplitude. Com o progresso da erudição no século XVI, surge o sonho de uma história perfeita e uma visão evolucionista e confiante no futuro no contexto do Estado-monárquico, estreitamente ligada à obra de construção de um Estado-nação França, diante da tormenta das guerras de religião. Destaque nessa fase é Étienne Pasquier, jurista de formação, que representa bem o ideal do meio togado atraído pela história e defendendo a origem gaulesa em uma história da França vista como livre do predomínio da língua latina e do direito romano em razão das diferenças de “costumes, de natureza e de compleição” dos franceses; destaca as tradições nacionais e defende a existência da França antes de sua nobreza e antes mesmo de Roma (usa como base o relato da Guerra dos gauleses, de César).
Prossegue o autor com o século XVII, tratando da “legenda dos reis”, no “Grande século” que acentua a “instrumentalização do saber histórico a serviço de uma monarquia reluzente”, privilegiando-se nesse momento os retóricos que resgatam Cícero e Tito Lívio. Retoma-se as origens troianas, consideradas mais nobres, em uma realidade de glorificação do poder. Quem não se enquadrasse nesse contexto, era levado para a Bastilha, como ocorreu com o erudito Fréret, por considerar publicamente como absurda a tese das origens troianas. O Estado é o maior agente de impulso das pesquisas históricas, com pensões e auxílios pagas pelo rei aos pesquisadores ao mesmo tempo em que se vincula a produção a um “atestado de patriotismo”, com uma grande produção sobre a história francesa. O destaque dessa fase é Mézeray, que encarna o aspecto de sua função oficial, elaborando um método que privilegia o acesso aos documentos originais.
Dosse retoma o foco da “batalha das origens”, abordando as controvérsias historiográficas que perpassam o século XVIII, em torno da questão dos germanistas e dos romanistas e a origem do poder monárquico, querela fomentada pelos teóricos engajados nos combates políticos da época. Um dos lados (germanistas) defende que a conquista da Gália pelos francos constituiria o verdadeiro pilar da nação França, enquanto que o outro grupo (o romanista) alega que essa conquista seria uma “ilusão histórica” por conta de que os francos eram aliados dos romanos e viveriam em pé de igualdade com esses. No século XVIII, a supremacia francesa se encontra ameaçada e “um patriotismo exacerbado serve de antídoto aos revezes que o país conhece” ensejando uma admiração espetacular aos “antepassados gauleses”, com exageros nas qualidades que eram identificadas nesse povo.
No século XIX, a batalha das origens reacende, porém, no contexto da legitimação da Revolução francesa, que seria resultado de uma “guerra das raças” como um ponto de confluência de uma luta de emancipação remontando a intrusão de uma raça estrangeira no seio da Gália. Mais tarde, Marx vai transformar a idéia da história animada por esse “motor constitutivo” em luta de classes. A digressão encerra com o item “Da política da memória ao Evangelho nacional”, percorrendo o século XIX, em abordagem sobre a preservação das aquisições da Revolução com a legitimidade da monarquia constitucional e uma memória nacional enraizada. Entre o fim do século XIX e o início do século XX o destaque é o historiador Ernest Lavisse com uma verdadeira republicação da memória e a divulgação nas escolas para conhecimento da história da nação pelas crianças. Conclui o autor que o historiador sabe de sua função central na nação e o mito das origens integra a legitimação do presente pelo relato do passado.
A diferenciação entre “duas memórias” indicada pelo filósofo Bérgson, a memória-hábito (que advém da parte sensória-motora do corpo) e a memória-pura (co-extensiva da consciência em relação à duração) é a próxima idéia explorada por Dosse. A relação com o tempo é a discriminante na distinção declinada o que resulta na compreensão de que rememorar e memorizar são dois fenômenos distintos. A dissociação entre história e memória defendida pelo sociólogo Halbwachs no início do século XX é outra idéia analisada pelo autor: a distinção foi o ponto de partida para o estudioso apresentar uma inovação sobre a maneira pela qual a memória coletiva se enraíza. Voltando ao tema inicial do trabalho, o autor identifica a recuperação da memória pela história sob a condição de um absoluto corte entre o que Halbwachs considera duas dimensões irredutíveis uma à outra. Conclui que existiria um falso dilema na escolha entre o pólo de uma “história fundada em um contrato de verdade” e o de uma “memória alimentada no tronco da fidelidade”, prevalecendo a conjunção dos dois valores em uma nova história social da memória.
Segue-se a questão da “problematização da memória pela história”, vislumbrando-se os chamados “jogos da memória sobre a história” e a idéia de que uma pesquisa historiográfica não pode ser separada de um exame das mentalidades coletivas. O deslocamento desse olhar por parte do historiador corresponderia a uma reviravolta historiográfica. Passa a ser identificada, nesse ponto, outra história (ou “história de segundo grau”) como indica Pierre Nora já no final do século XX, com ênfase não mais às determinantes, mas aos efeitos, não mais o passado, mas os seus reempregos sucessivos. Como conclusão, Dosse indica que se impõe a tomada de consciência do historiador quanto ao estatuto de segundo grau de seu discurso, devendo-se evitar o impasse de uma total separação e também a fusão das duas dimensões: história e memória. A prática psicanalítica seria sugestiva para o historiador e, para tanto, o autor apresenta a teoria de Freud ilustrada nas mediações comuns à psicanálise aplicados ao trabalho de investigação da historiografia, além do ponto em comum do “caráter ferido” da memória para captura de lembranças dolorosas, na experiência do “trabalho do luto”, por exemplo.
As chamadas “patologias coletivas da memória” também é um campo vasto de pesquisa manifestas, por exemplo, pela repetição da “comemoração” e “patrimonialização” do passado na França. A relação entre memória e esquecimento também integra o debate entre o “muito” e o “pouco” da memória, na idealização de uma posição razoável preconizada por uma libertação e, em relação a um povo, uma nação, ou uma identidade cultural uma “concepção aberta e viva de suas tradições”. Apresenta-se, então, a visão de um “futuro do passado”, como uma evocação: durante muito tempo a história foi instrumento de manipulação, mas ela pode ser reinvestida de uma perspectiva aberta ao futuro, no difícil diálogo entre “o mundo dos mortos e o dos vivos”, como ciência da mudança, na expressão de Marc Bloch, eliminando aos poucos os caminhos obscuros e complexos da memória. Mas o alerta é dirigido aos historiadores diante do aparecimento, nos anos 1980, de propostas de caráter negacionista, lembrando-se o dever de memória e o compromisso com a verdade da disciplina à qual pertencem.
Por fim, em conclusão do texto, apresenta o autor uma análise sobre a incidência da repetição e da criatividade. Apresenta o rito como um “marcador de identidade” e observa a característica da memória coletiva de não se situar exclusivamente no eixo da rememoração, ingressando no campo da criatividade, com o atributo de registro reconstrutivo de um discurso. A história social da memória, ainda por vir, deve ter em sua construção a possibilidade de pensamento conjunto de duas exigências: “o questionamento da verdade” que seria o apanágio do historiador e uma busca de fidelidade que seria “a mola do memorialista”.

Adilson Luís Franco Nassaro
Divulgue, citando a fonte.